terça-feira, 7 de outubro de 2014

Máscaras


Pulsam eloquentes
as vontades que agradam
ao ego

traída 
a delicadeza
em cuidar de verdade
da alma
só resta ao ser humano
desculpar-se 
com a dureza do viver




quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Desalento


Foi de mim
vulnerável
a quotidiana prece
a irrecusável
esperança
na humanidade

      - foi só um momento




sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Nuvens passageiras


Pouco se demoram
na imprecisão dos dias
sem querer descolam
de mim sinuosos 
passos de neblina

ah 
a melancolia






domingo, 14 de setembro de 2014

Selva


Olhos de pantera:
luxúria verde
interrompida pela calha
que devolve à terra
as águas pluviais

uma serpente pendurada
de uma árvore alta

nada escapa ao seu olhar



sábado, 6 de setembro de 2014

Fósforo


Um fogo
no centro
no meio 
do vagar

o calor
do vento
nervura
do tempo
a sussurrar

- uma mulher que virou chama
  os dentes cravados no vibrante ar



segunda-feira, 1 de setembro de 2014

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O último rosto de Hécate


A mulher 
que mora no final do tempo
é mãe criadora
luz do abismo
e deusa da morte

errantes 
as águas convergem
para o útero
onde fizeram ninho

ela passeia 
sob um sol negro
na hora fria 
e funda







sábado, 23 de agosto de 2014

Flor tortuosa


Outra vez rosa
flor desgastada em mágoas
espinhos guardados
para sangrar o coração

mas não faz mal
a minha alma
é um jardim aberto
acolhendo o sol
nas tuas pétalas viçosas
no teu perfume perenal
- o encanto tortuoso de Deus



domingo, 10 de agosto de 2014

Sobre a paixão


Pela dobra da alma
espreitei ao acaso
demorei o olhar
pedi ao tempo
um prolongamento de prazo
e fiquei nesse lento
momento a momento
amestrando o instante
em que a chama
afaga todo o ar



quarta-feira, 30 de julho de 2014

Tecelã


Tricotando no reverso
ao cruzar a noite padeço
do que é certo para mim:

- introspeção 
entrelaçando o sangue
a centelha da vida

- e o acaso também é tecido
nesses fios inexplicáveis
tão precisos a urdir o princípio
ao fim







terça-feira, 22 de julho de 2014

Matinal


Onde descanso
a minha inquietação
consinto 
a audácia do sol
clareando pátios e fontes
permitindo a frescura
do beber matinal
tornando-me 
um rumor de pássaros 
e águas cantantes






terça-feira, 15 de julho de 2014

Paisagem mutante


Nasceu na beira da estrada
nas margens se tornou errante
e conheceu o mundo
nessa condição de desvio
seguindo os seus pés andarilhos
pelo gesto antigo de caminhar
pôde reconhecer por dentro e por fora
o alvoroço da sua alma
inscrito na paisagem mutante



segunda-feira, 30 de junho de 2014

Saber-te vivo e grato


Eu queria de ti amor
apenas
saber que te guias por um sonho
que a tua vida é plena
que arriscas tocar tudo
o que a tua alma anseia
que o amor é a tua fome
que na dor te superas

eu queria de ti amor
apenas
saber-te vivo e grato
enquanto por mim esperas




quinta-feira, 26 de junho de 2014

Duas pontas tem o teu sorriso


Duas pontas 
tem o teu sorriso:
de um lado
um verbo inteiro
resolvido comigo
do outro
um silêncio meio-dito
entre o desejo constrito
e a espera



quinta-feira, 19 de junho de 2014

As coisas não garantidas


Ser habitada pela água
e todo o entendimento
se diluir em mistério

ser um fluxo que desce
como o sangue 
de todo o mês

ser esse turbilhão de águas
nunca definitivamente
resolvidas

a vida não desiste nunca 
de te chamar
para as coisas não garantidas





domingo, 15 de junho de 2014

Ondina


Ondas de silêncio
lambem-me
usufruem do tempo
ainda sem nome
são línguas de águas efémeras
que me atravessam
enquanto transbordo do mar
eterna



domingo, 8 de junho de 2014

A consistência do ser


A consistência do ser
anoitece:
uma fenda
alastra
assedia as terras
repartidas
faz das sombras
suas reféns

até que 
pela aurora
a claridade
irrompe 
e de novo o ser
se totaliza

assim anoitece
assim se faz dia



quarta-feira, 4 de junho de 2014

A palavra e o poema


Um berço para a linguagem
um texto recém-nascido
a palavra que eu procuro
é rara
e só a poesia a exorciza
dos horizontes que tingem
e tangem os seus fins



sábado, 31 de maio de 2014

Há ...


Há sementes pousadas 
nas concavidades das horas
à espera de florirem os prados

Há dias mapeados nos nossos corpos
com as coisas do quotidiano
à espera das grandes escolhas



segunda-feira, 26 de maio de 2014

Casa em construção


Guardo para um 
futuro próximo
um universo de sentimentos
e o projecto de uma casa
desconstruída em cada viagem
sonhada em cada paragem

calada 
a noite acorda vozes
que ignorei durante o dia
e eu não sei se o que guardo
é aquilo que sonhei
ou se os meus sonhos
foram guardando
tudo aquilo que sentia



quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sob a chuva


Sob a chuva
tombam pássaros
alados
suas asas molhadas
são os códigos dos cílios
no esquecimento 
dos sonhos

na enxurrada
folhas e lama
vêm misturadas
e eu não separo
os instintos mais belos
dos disfarçados
na confissão dos sonhos














segunda-feira, 19 de maio de 2014

Retrato


É difícil desvendá-lo
cativá-lo
entre as sombras e a luz
decifrá-lo
na sua líquida essência
como só os olhos calados 
dos gatos
o fazem

















segunda-feira, 12 de maio de 2014

Para sempre um outro


Para sempre separado
para sempre um outro
no seu mistério insidioso
para além do nosso laço
da cúmplice caminhada
dialógica relacional
para sempre longe 
do meu domínio

assim és
um outro incogniscível
hospedado na minha casa
eu parteira das tuas descobertas

























segunda-feira, 5 de maio de 2014

Máscara


Permite-me
a queda do fascínio
o indizível errar
que rompe qualquer 
deslumbramento
sou fiel em amar-te
assim como te mostras
e como te escondes
na repetição do corpo
- seu avesso























sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 de abril


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


           Sophia de Mello Breyner Andersen






















                                        40 anos de liberdade



terça-feira, 15 de abril de 2014

Iluminar todas as encruzilhadas


Existo
a vida trouxe-me
estes caminhos
onde vou conhecendo o meu chão
por entre as dúvidas 
e as possibilidades

no escuro da minha casa
-quando falta a luz-
posso alcançar quase tudo
(mas quase não é tudo)
e recordar que já tive medo
medo do escuro
do inesperado
do desconhecido
e ainda assim agradar-me
dessa sensação de arrepio
de estar viva
de precisar de iluminar
todas as encruzilhadas



domingo, 13 de abril de 2014

Homeless


Onde ficou 
o meu apego
essa miragem 
de pertencer?
em que incerto lugar
em que margem
em que borda 
do meu ser?

onde perdi 
a linha de água
o caminho traçado
a percorrer?
onde me encontro
nesta luz clara
no fundo longínquo
do anoitecer?






sexta-feira, 4 de abril de 2014

Pássaro desigual



Chegar ainda é distante
antevejo o teu corpo
como uma sombra de asa
pronunciando o seu vôo
primitivo e apátrida
estranhando a sua casa

não sei amanhecer igual
todas as manhãs me acenas
por entre as danças da claridade
és de longe o mesmo corpo
contudo um pássaro desigual
distante ainda em chegar




quarta-feira, 2 de abril de 2014

As pedras e o vento


Enchemos de vozes o vento
calámos o tempo
e o vento beijou um a um
os nossos cânticos eternos

fizemos amor com os astros
e acordámos nascentes sobre as pedras
com os corpos resignados às cinzas
e os olhos acesos de infinito

                        suspensos nas estrelas




domingo, 16 de março de 2014

Nada é pequeno nesse mar


Chove 
nas vagas
do amor

no vagar
das ondas
o tremor

dor
que não 
magoa

lágrima
que sabe
a flor

borboleta
com asas
de beijar

e nada
é pequeno
nesse mar



domingo, 9 de março de 2014

Angústia


A ruína nos teus olhos
avançando pelo tempo
e o tempo 
debruçando-se
nos abismos existenciais

fogo posto
apenas mais um pouco
de memória
confundindo as cinzas
dos teus ossos

mesmo assim continuas
a lutar por existir

os teus dias
não aceitam
as pesadas horas
nem o silêncio
que encerra a morte

- derradeira passagem 
para o nada



quarta-feira, 5 de março de 2014

Sedenta estrada



Ao longe 
as infindáveis águas
todos os desertos expulsos do teu olhar

amanhã será a tua noite saciada
e ainda assim 
sedento será o teu caminhar




segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O teu nome é estranho


O teu nome é estranho
e nem sempre me acaricia
por vezes sulca-me na carne
um esquecimento
uma amargura
e deixa uma cicatriz
sem me avisar

o teu nome é estranho
e misterioso como o amor
alimenta-se com tão pouco
e espera sempre mais:
um gesto detalhado 
do meu corpo em fuga
um silêncio que desvele
toda a minha perdição

estranho som
ressoando no meu corpo
leve e frágil
denso e triste
leva-me o teu nome
pulsante
das minhas mãos
até ao teu sorriso



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Trémulos


Os seus olhos
fúnebres
velavam as dores
mais prosaicas
e soterravam
as promessas
mais nobres

com
os seus olhos
escassos
quisera ser
um animal dócil
uma carne
disfarçada de anjo

mas foi
nos seus olhos
trémulos
brilhantes de medo
ou desejo
que nasceu
uma luz mais humana



terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Paisagem aberta


Por anos
voltamos ás mesmas paisagens
procurando amparo
nas margens já percorridas
e desertas
como quem penhora
a sua face conhecida
pela respiração incerta
de uma face escondida

depois partimos
no rastro 
dos peixes voadores
entregues aos dividendos
do imenso mar - paisagem aberta



sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Alma antiga


VI

No mais subtil dos sismos
vemos uma flor 
desabrochar
enquanto se desenrola
o tremor de terra
num sopro de ar

fugaz
perde-se o meu olhar
como nevoeiro 
ou um pássaro
que voa
mas sob a claridade
da lua
um tigre agita-se
por entre os juncais

inclina-se a noite
como um sabre 
cortando a luz
e chega rubra
a alvorada:
a manhã seduz





quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Alma antiga


V

Porque o espírito antecede o tempo
e o cântico dos anjos ecoa nas fronteiras

entre as margens
sou um rio a fluir para o mar
sou uma ponte para atravessar

e sou as margens
que o rio refresca
que a ponte alterna





terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Alma antiga


IV

Não pode ser tarde
tão cedo

moldar a vontade
correr de olhos fechados
e abri-los 
só na hora de ansiar a clareira 
onde a luz suspende
o melhor jardim de sombras verdes





quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Alma antiga


III

Como foi isso?
as palavras que eu escrevi
já antes dançavam no ar

oh sabedoria do corpo
guiando-me de lugar
em lugar

já antes dançavam no ar
unindo o que estava separado
guiando-me de volta ao lar


domingo, 19 de janeiro de 2014

Alma antiga


II

sonhei que desaprendi:
errante subia
entre as chuvas e os céus
até a um sol incerto
vibrante me prendia
no ritmo do tambor
na vertigem do corpo
aos sons-relâmpagos do alvor

nada mais sabia
além da respiração da terra
por entre os nomes da noite
alvorecer era a descoberta


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Alma antiga


I

intentos
no brilho de uns olhos intemporais
visão profunda e anímica
aguça como a águia
irrompe na força dos ventos
vislumbra a escarpa transcendente
sopro ancestral
o teu sangue é o meu espelho
meu animal de poder
ímpeto de liberdade
pressentimento de viver





terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Prelúdio


quase nada
foi demora
foi saudade
foi o sol nas janelas
um prelúdio
da memória
de uns breves lençois
cor de rosa
nos estendais