domingo, 29 de novembro de 2015

Já não me vi outrora


Eu percorri um arco em chamas
e já não me vi outrora
fui fiel na minha fúria de viver
uma estranha correspondência
com a ânsia dos sonhos

já tarde esclareci 
os meus passos de bailarina
nos rasgos em que me excedi
pus desfeito o coração 
nas partes soltas

pedi trégua ao tempo






segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Ávidas janelas


Vi nada:
ávidas janelas 
por entre a chuva 
dos olhos

reverberei:
então a luz tombou
nas cores das flores
em jardim

vi sombras:
agora o sol cegou
por entre as janelas
sumi




quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A metáfora dos bosques


Os pés confirmaram o canto dos pássaros
a menina escutou a metáfora dos bosques
sossegou uma vontade resumida
apressou o desejo do corpo

apenas um instante 
antes dessa exaltação
prendeu os pés
no balanço do sangue
mordeu os lábios na cor dos rubis
marcou o canto dos pássaros na pele



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Hoje provei um pouco de vazio


Hoje provei um pouco de vazio
cativei um pássaro 
avidamente doce de distância
cobrei da estranheza 
o calor do vinho novo 
o laço ébrio
de me sentir em casa


quarta-feira, 28 de outubro de 2015

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A fala do indígena


A fala do indígena
sucede aos círculos do silêncio
vibra quieta antes do vento
gira imóvel
como os  pequenos galhos
dos ninhos 
antes de nascerem os pássaros

a fala do indígena
anela os dedos das crianças
quando observam e escutam 
antes do ímpeto
e antes de aprender tudo o que há
de trato corrompido ao colonizar

a fala do indígena 
pode ter a força dos ventos tornados 
que hão-de dar voz a todos os exilados











domingo, 11 de outubro de 2015

Só através do coração podes tocar o céu


Só através do coração podes tocar o céu
disse Rumi poeta sufi

e a face de deus quem sabe 
se é esse cântico do universo por fazer
ou o silêncio que fica na limpidez do ser


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O retorno do sol





                    Celebrando o retorno do sol àquele momento inicial do sopro vital




domingo, 13 de setembro de 2015

A dança do Samurai


Não é suave 
como a relva bem cuidada dos jardins
é aço e melancolia 

só a alegria da vontade acaricia o caminho
por isso danço para cativar o tempo

uma sóbria espera





quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Ao pesar o coração


Ao pesar o coração
senti-o leve
porque aprendi com as rosas

 faltava-me alguma coisa
disseste

mas já eu tinha perdido tudo
e nas mãos floriam lótus 



domingo, 6 de setembro de 2015

Mãe primordial


No ventre 
tenho uma espiral de luz 
para o mistério
e liga-me ao universo
essa obreira 
abelha e flor da vida

aquieto nele um olho de furacão
- a sede e a fome vivente
dessa criança inteira












sábado, 5 de setembro de 2015

A demora das feras


Veste-me de nuvens
de rio 
de pedra perdida
de porto albergue
de partida

de montanhosa
descoberta
de diamantes raros
de veludo e garras
de onça

veste-me de sol poente
de marítimo porte
de figueira-brava
de espinhosa flor
de serpente

de entrelaçados ventos
de caos 
de véus de sibilas
de pássaro levante
de esperas

depois despe-me
com a demora
da tua e da minha 
imperfeição
e possui-me 
como se a vida
se alentasse 
de feras



domingo, 30 de agosto de 2015

Veranil


Atravessar o espanto da noite
esperar o gesto revelado
na madrugada
                     um esboço do dia

guardar sob a pele 
o orvalho matinal 
que pende do alpendre
da casa no verão

já na languidez das tardes
o estalar das flores 
faz crescer a distância
até ao anoitecer

o poema preenche-se de mar
de sal nas rotas do sol
preenche-se com os campos de uvas
o cantar das cigarras 
os aposentos do luar

                    







sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O muro


O muro tem os seus homens
disseram os meninos

vamos vê-los ao crepúsculo
nos recônditos das insónias

vamos espantá-los 
das incontáveis margens
em que se despencam
os seus sonhos vencidos



domingo, 19 de julho de 2015

Ser Humano


Pousou a cabeça sobre os sonhos
apesar da vida lhe tremer no corpo

lançou a sua sina aos nomes de deus
e quando matou deus 
nem sempre encontrou o próprio rosto

ser humano é querer ser mais 
querer ser ainda outro 
para além de imprevisto e morto

entornar os sonhos sobre o seu tempo
ser assim vulnerável e forte
e querer decidir sobre a sua sorte 







sábado, 18 de julho de 2015

Evolução


I

Uma cama de água ímpia

lavra no presságio 
a garça
íntima da beleza

das águas surgirão os homens
outro bicho-flagelo
com ampulhetas medindo os céus







II

Foram as mãos que surgiram dos pântanos
e alcançaram o topo das árvores

o corpo ergueu-se sempre mais
reclamando liberdade
conheceu e dominou

mesmo quando afundou
as mãos sucumbiram mais tarde

lembradas de renascer














































sexta-feira, 17 de julho de 2015

Génese


Vinha do vulcão a escória 
que nos precede

sob a claridade das águas
longe era ainda o som 
coagindo a vida
e por ora só uma mudez
hermafrodita

convocado o oceano
o vento as nuvens 
e o trovão
revoltaram-se então
as águas
no prévio caldo escuro
donde viemos

foi primordial
a cor do chumbo
e as sulfurosas águas
amarelas

então
nas línguas da lava 
percorrendo a terra
de rubro e alaranjado
foi-se o verde firmando
pelo marron acidentado 
dos relevos

no alastrado das águas
foi-se tingindo de azul 
toda a liquidez do planeta
e num curvo telhado
também o céu se cobriu
nos tons dispersos do azul
















domingo, 12 de julho de 2015

A luz não partilhada



Um outro 
olhou-me assim:
dobrada ao meio a noite surgiu 
nos seus olhos sem me atingir

disse-me 
que a verdade do mundo era a sua 

a minha era tão inútil e faltosa 
do que dele mesmo projetava -
os dias marcados com os seus 
egóicos consolos e lamentos -
que não valia nada 

não era um eco que eu ouvia
mas um ruído áspero e vil
hostil de tão repetido

estar só nunca foi estar sozinho/a
estar só é não ser compreendido/a
é uma luz não partilhada

respondi-lhe assim:
a solidão é a minha delicadeza
e a minha noite segue grávida 
do amanhecer 








quinta-feira, 9 de julho de 2015

Búzio


A lavoura do mar
dentro de um búzio

segredo e espuma
forte rebentação
sementeira e lavra
na maresia

colheita perdida na imensidão

mar infinito
mar chão




segunda-feira, 6 de julho de 2015

Flores da hera


Flores da hera
que oferecem às abelhas
o seu derradeiro mel
e são para as borboletas
última tremura de agitação

um sopro de vida assim 
tão perto de ser preenchida
e onde por dentro da vida
também caiba o fim









quarta-feira, 1 de julho de 2015

Recomeçar


Tenho uns pés 
andarilhos
que procuram
mesmo até onde 
se acaba

e uma cabeça 
mais madura
sabe o que quer
e pondera
a aventura

e tenho um coração
que amanhece
nas mãos
e as mãos
recomeçam 
tudo



quinta-feira, 28 de maio de 2015

O mundo inacabado


dei uma imagem
à palavra

dei uma palavra
à imagem

no final
fui solicitada
ao mundo

mas ainda sobrei




terça-feira, 26 de maio de 2015

Gestalt


Todos esses lugares
e não lugares 
como ramais do ser
existem
vislumbrados
nas cores que se acendem
ou na ausência delas 
quando se anoitecem 
existem
aprimorados
nas formas que definem
profundidades e contornos
das paisagens que aparecem

existem todos esses lugares
e também os não lugares
que me aprofundam 
um lamento
de não ser tudo
de em cada instante
me obrigar a escolher
entre a figura e o fundo





quinta-feira, 21 de maio de 2015

A vida que é sonhada


Há dias em que apetece
não dizer nada
calar apenas
pois dizer soa a vida falhada

- o que queres?
pergunta uma gente apressada
digo não quero nada
e soa a vida demorada

acude-me então
o costume oblíquo
de apanhar palavras daqui e dali
para sossegar ansiedades alheias

mas não:
se sou fingida em agradar
alude honestidade ao meu querer
e sigo lenta em esperar
que essa vida sonhada
coincida com o meu dizer






segunda-feira, 4 de maio de 2015

Lua cheia de Wesak


o meu Buda é menino
e toca tambor
quando fala com Jesus
enche-se o espaço de luz
e de amor




sexta-feira, 24 de abril de 2015

Desta maneira de errar


Desta maneira de errar
sou submissa
quando me escudo como Perseu
nas imagens que não vejo

máscaras: retrato falhado

no olho de dentro 
está o imperceptível caminho
para o invisível

nele sou cega 
perante o implausível rosto 
do real






terça-feira, 21 de abril de 2015

Outra pele


Entre a ferida e a cicatriz
a aprazível desmemória
saudosa do toque de outrora

e é quando o tempo se rasga
na lembrança de outra pele





quinta-feira, 16 de abril de 2015

Queda


No mesmo lugar 
e num lugar outro
estou de bruços
deitada sobre a terra
as pedras também soluçam
e constelam
no chão que treva
chegará
a agonia à noite  
penetrando-a de omissão
cintilando penitente
onde a minha nudez aterra



sexta-feira, 10 de abril de 2015

Asas


              I

As almas têm asas
são as borboletas e os pássaros
de uma linguagem que transcede 
a primitiva ordem da matéria
e decifra os céus


           II

Dos seculares passos sobre a terra
onde se agrega o movimento da evolução
fomos somos e seremos 
as mil faces rastejantes
do bom selvagem e da fera

       
          III

Ah vislumbre humano:
a carne os ossos o sangue
que somos antes do pó
anseiam pela lonjura de nós


           IV

Asas para a imensidão dos céus
nascidos da terra e da água
temos asas somos bichos de voar


            V

Somos alados nesta humana condição
anjos visitando lugares de superação


            VI

Corpos para além da queda
como pássaros e borboletas 

                                                                           


                               



                           VII

              Almas com asas

terça-feira, 31 de março de 2015

Somos movidos por propósitos


Somos movidos por propósitos
o que podemos ainda receber
sossega uma inquietação profunda
o brilho do deserto
esse ar vibrante que nos magoa
impele-nos a procurar as fontes
a saciar uma sede fecunda
nem que seja no fundo dos poços
onde a água se escura e se espelha


segunda-feira, 16 de março de 2015

Ânsia de desconhecer


Ânsia de desconhecer
donde vem esta amplitude
entre mim agora 
e o que ainda posso ser?

não concebo as coisas definitivamente
resolvidas
se digo que o amor é
o mais valioso bem
dou-lhe já o dom de um afeto
desabitado de mim toda possuída

para o amor quero ser
este mistério
em troca da sua companhia


segunda-feira, 9 de março de 2015


Com o teu pranto
refaz-se o afago da noite
no vestígio da aridez -
elegia das relações provisórias

devia haver por todas as ruas
um luar capaz de varrer
as dores mais cruas

uma confissão que acendesse
nas minhas dúvidas a tua
mais urgente interrogação

um modo de sermos maresia
no imenso profundo mar dos afectos 






quinta-feira, 5 de março de 2015

Honrando a existência (a espada do samurai)


As tragédias humanas
parecem exceder
a nossa capacidade de sofrimento
mas todo o conforto 
toda a mesmice instalada
é também motivo de angústia 

contingência e liberdade
e a sentença da finitude
pairando sobre a vida
eis a espada do samurai
desembainhando a existência 





quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Quem nunca?


Quem nunca pensou
sobre a morte e sobre a vida
se a alma é livre
ou se está constrangida
a uma escolha pequena?

quem nunca sentiu 
o balanço confuso
entre ganhos e perdas
a vertigem da queda
o chamado do ser
a desvelar o sentido?

o medo de vir a chorar
antes da morte
por não ter vivido?



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015




 por entre as pausas da poesia
   
 ...   


em todos os lugares que pisou desabrochou uma flor de lótus 
 (diz a lenda sobre os primeiros passos de Buda menino)