Idealista

Pelos rasgos do hábito
me detenho
me espanto do incerto
cheiro de morte

que estremecimento é esse
que torna o futuro inesperado
e transforma o presente no passado?

é o tempo fissurado

nos sucessivos cambiantes

do meu mundo vital

sacudo os hábitos
já modificados

suspendo o tempo

assombro o ideal
e toda a minha inteireza
se vai completando
infinitamente
nesse eterno morrer e acontecer

existo nessas cadências graduais
e não existo sem os meus ideais

Sentença de amor

Todo o coração tem
a sua sentença de amor
que julga cobra condena
os outros corações

amor construído no vivido
feito de valores de ideais
hoje assim é sentido
mas amanhã talvez transformado
num outro querer e sentir
que então é devolvido
a quem assim quiser ser amado

um homem comodista
reverteu o seu amor incipiente
em ódio disfarçado de desejo
e a mulher que acolheu
esse seu gesto egoísta
já não chora sofrida
antes se enche de tédio
ela queria um amor altruísta
e ele tê-la debaixo do seu tecto

e assim se desavindam afectos
inusitados corações
que perderam o nome do vínculo
um dirá do outro
"que estranha forma de amar"

Predilecta vocação

Como um labirinto mágico
que virou
encruzilhada de saberes

luzes a descortinar
as tantas faces do real

nem sei como começou
se a contar histórias
se a viver
se a cuidar de gente a crescer

saber e fazer despertar
aptidões e talentos
que os tornam singulares
orientar conter educar
atitudes e valores transmitir
tutelar esse primeiro caminhar
pela aventura do existir

fez-me perceber afinal
que toda a pedagogia
psicologia
filosofia
arte e poesia
ciências exactas
sociais
esotéricas
religião
espiritualidade

vão-me emprestando as palavras
que caminham
paralelas
descontínuas
justapostas
que ora se cruzam
ora se ignoram
e nunca se bastam
para entender
aquele concreto ser
corpo
mente
alma
espírito
de humano devir
feito de átomos
e de divino

e essas palavras
tão frágeis quanto poderosas
ligadas a tantas faces de mim
falta-me ainda ligá-las
ao som mais antigo
assíduo
e sagrado
da palavra
e face inteira de mim: Mãe

Desobsessão

Não, não é uma reflexão com base no espiritismo...
mas um breve apontamento acerca da importância de transcendermos
as nossas pequenas ou grandes obsessões sendo capazes de rir delas,
de ironizá-las ou ignorá-las, reorientando a nossa atenção para fora de
nós através de uma entrega e dedicação a algo ou alguém que configure
sentido à nossa existência.

Na sua obra A Psicoterapia na Prática, Víctor Frankl, fundador da Logoterapia
uma das principais modalidades de psicoterapia existencial, citando o escritor
francês Georges Bernanos, comenta:

No Diário de uma cura de aldeia, de  Bernanos, encontra-se a bela frase
"É mais difícil do que se supõe odiar-se; a misericórdia consiste em esquecer-se".
Nós podemos mudar essa afirmação e dizer o que tantas pessoas neuróticas
frequentemente não conseguem ter em mente: "Muito mais importante do que
desprezar-se muito ou considerar-se muito seria esquecer-se completamente",
isto é, não pensar mais em si mesmo e em todas as realidades interiores e sim
dedicar-se a uma tarefa concreta, cuja realização é pessoalmente solicitada e
reservada a algo ou alguém.

Carmesim

deu-me uma rosa vermelha escura
carmesim
seu coração fugidio
mas com intrépido desejo
de me suspender do resto do meu viver
de me verter a si
de me incendiar
contaminou-me de febre intermitente
um amor livre
sem apego e sem fim

A linguagem da dor

dor - palavra distensa
ou suspensa pendente
de rótulo ou sentença

a dor é mais do que uma experiência sensorial e emocional
como diz o dicionário
ela é também significado
passaporte para a nossa humanidade

no entanto
esquecemos de ensinar isso às crianças
presos que estamos em dicotomias
de prazer e desprazer
e outras que tais

porque chamado à responsabilidade de se escolher
de existir como mortal
o ser humano sente a angústia e o desamparo
- essa dor existencial

e perturbar-se
uma vez ou outra
ou de forma grave e/ou contínua
introjectando e projectando a dor de ser-no-mundo
é também uma possibilidade do existir

Quantas vezes

Quantas vezes caíu ele ao chão
quantas vezes levantou sua imprudência
quantas vezes um anjo ali tão perto
lhe segurou e confortou o coração

quantas vezes o seu coração tombou
numa tristeza incompreendida
quantas vezes se arribou à pressa
antes de ter ponderado a vida

quantas vezes a vida o abraçou
como ele gosta de abraçar os outros
quantas vezes ele à vida se negou
para não suportar sua dureza

mas eis que o anjo lhe segredou:
agora vou eu ser a criança
também quero sentir o que doi
e tu vais ser o meu herói

Pssiiiuuu estás a ouvir?
Já é hora...

Parabéns, irmão que se tornou pai.

Leonor

Bem vinda, Leonor!
Teus pais, avós, tios, primos e amigos te acolhem com muito amor.

Voar

Dá-me as asas que eu perdi ao nascer
para que os meus pés
pudessem pisar a terra
mergulhar no mar
e as minhas mãos
pudessem tocar no fogo do teu amor